As repercussões da MP 984/20 e os direitos de transmissão das partidas| Por Fabio Freitas
A grande novidade dos últimos dias, mais especificamente no dia 18/06/2020, foi a edição Medida Provisória 984/20 pelo Poder Executivo. Embora o texto promova outras alterações na Lei Pelé, o ponto que gerou um grande alvoroço entre os especialistas e entidades esportivas é o ponto que estabelece que os direitos de transmissão das partidas esportivas pertencem ao clube mandante do jogo.
Independente do mérito, uma mudança dessa magnitude não deveria ser promovida através de uma Medida Provisória, afinal de contas, existem diversas partes interessadas. A única forma de exaurir o tema é através do amplo debate com os demais agentes do esporte. Além disso, estamos no meio de uma pandemia gravíssima e a utilização de medidas provisórias deveriam seguir o rito estabelecido na constituição, ou seja, apresentar caráter de relevância e urgência, o que não parece o caso, salvo a permissão para a redução do contrato de trabalho do atleta por um período de um mês.
Independentemente dos fatores políticos, na minha opinião, o tema precisa ser abordado com o devido cuidado. Mesmo em seu caráter provisório, o único ponto positivo da MP 984/20 foi reascender debates que mais cedo ou mais tarde deveriam retornar para a pauta, no entanto, desde a sua publicação, já surgiram mais de 90 propostas de emendas, algumas, absurdas, que demonstram completa falta de conexão com as necessidades dos clubes.
Há muitos anos o nosso futebol respira por aparelhos, clubes endividados, desunidos e cada um buscando de maneira independente os seus interesses. Ao contrário de outros países, não temos uma liga, muito menos uma negociação coletiva dos direitos de transmissão.
No final da década de 80, a Copa União de 1987 representou um marco na comercialização dos direitos de transmissão dos clubes brasileiros. Naquele momento, tivemos o embrião do que seria o desenvolvimento de uma liga brasileira e possivelmente a independência financeira dos clubes. Na época, os principais clubes brasileiros se uniram e negociaram de maneira conjunta os seus direitos de transmissão, além de serem responsáveis pela organização do campeonato brasileiro. Para quem não conhece a história, o Clube dos 13 representou a união oficial dos Grandes Clubes do Futebol Brasileiro.
Infelizmente, com o passar dos anos, o que poderia representar um importante pilar para a liberdade financeira das agremiações foi perdendo a sua força e essência. Os clubes, cada vez mais desunidos e pensando somente em seus próprios interesses tornaram o ambiente de convívio insustentável. Em 2011, ainda sem a constituição de uma liga profisssional e sem o mesmo viés inovador do outrora, ocorreu uma grande debandada do movimento. Quase que em sequência, diversos clubes se desfiliaram e anunciaram que negociariam os seus direitos de transmissão individualmente, sem a mediação do Clube dos 13.
A década passada também ficou marcada como um período onde o futebol brasileiro ficou mais rico e mais desigual. Em 2011 houve um crescimento de faturamento 27% superior em relação ao ano anterior, no entanto, este aumento estava associado à renegociação dos contratos de direito de transmissão de TV, que, para muitos clubes, até hoje é considerado uma de suas principais fontes de receita.
O período de 2011 até 2018 manteve um padrão de negociação. Os clubes mais populares levavam vantagem e assinavam contratos de longa duração, independentemente de sua permanência na primeira divisão. Por outro lado, clubes de menor porte, principalmente os afastados dos grandes centros, formalizavam um acordo de apenas 1 ano, o que inviabilizava um planejamento de longo prazo e sua consequente manutenção na Série A.
Em 2019, o Brasil importou o modelo de distribuição das receitas da Premier League (Liga de Futebol da Inglaterra). Embora as negociações ainda tenham acontecido de maneira individual, sem a constituição de uma liga, a distribuição dos valores apresentou novos critérios de distribuição.
Rede Globo:
- 40% são divididos igualmente entre todos os clubes
- 30% são divididos conforme número de jogos transmitidos
- 30% são divididos de acordo com colocação na tabela
Turner:
- 50% são divididos igualmente entre todos os clubes
- 25% são divididos conforme a audiência dos jogos
- 25% são divididos de acordo com colocação na tabela
As transmissões das partidas do Campeonato Brasileiro da Série A tiveram uma importante mudança em 2019. O SporTV, que anteriormente era o único detentor dos direitos televisivos contou com a concorrência do Esporte Interativo na exibição das partidas na TV fechada. Na TV aberta e no pay per view, os direitos de transmissão permaneceram exclusivos com Globo e Premiere FC.
A ausência de uma liga fortalecida e um formato de negociação coletivo estão na contramão dos principais mercados mundiais. Os clubes brasileiros precisam entender que eles não jogam sozinhos e a união faz a força. Se já parece inimaginável resolvermos a parte doméstica dos nossos problemas, o que falar da construção de um produto para comercialização internacional?
O melhor cenário, na minha opinião é a negociação coletiva, mas, a desorganização ainda impera. No contrato vigente para os próximos anos temos o seguinte cenário:
Turner (TV fechada)
- Bahia, Sampaio Corrêa, Athletico-PR, Coritiba, Joinville, Criciúma, Palmeiras e Guarani;
Globo (TV aberta e PPV) e Turner (TV fechada)
- Ceará, Fortaleza, Paysandu, Santa Cruz, Paraná, Internacional (com Turner até 2021, depois com Globo em todas as mídias), Santos e Ponte Preta.
Globo (TV aberta, TV fechada e PPV)
- CRB, CSA, Vitória, Atlético-GO, Goiás, Vila Nova, Atlético-MG, Cruzeiro, América-MG, Boa Esporte, Sport, Náutico, Londrina, Botafogo, Flamengo, Fluminense, Vasco, Grêmio, Brasil-RS, Avaí, Chapecoense, Figueirense, Corinthians, São Paulo, São Bento e Oeste
É importante destacar que embora a Medida Provisória 984/20 permita a negociação individual, ela não é obrigatória. Os clubes podem se organizar em liga ou em blocos para negociar esses direitos. Não podemos e nem devemos culpar a televisão pela desigualdade no futebol.
O reequilíbrio do futebol brasileiro passa por questões mais amplas e até mesmo estruturais, como por exemplo: entrada de investidores, clube empresa, revisão do calendário. Precisamos pensar melhor no produto que está sendo comercializado.
É importante destacar que o futebol espanhol ficou muito desequilibrado quando as negociações eram individuais. Esse cenário mudou quando houve intervenção em 2015 e a centralização dos direitos na LaLiga. Como exemplo, em estudo desenvolvido pela KPMG foi apresentado um mapa das principais ligas mundiais, suas receitas, canais de distribuição e detentores de direitos. É visível que o conceito de negociar em conjunto aumenta a fatia do bolo para todos.
Independente do momento, é pertinente que o debate seja ampliado, sou a favor de algumas disposições trazidas pela MP 984/20, como por exemplo, a redução do prazo de contrato de trabalho desportivo, que é uma medida emergencial. Além disso, a alteração nos direitos de transmissão para o mandante da partida abre novas oportunidades para a chegada de novas plataformas, além de uma maior concorrência.
Vamos aproveitar o momento para iniciar um debate com qualidade e não delegar as decisões para a política!